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Brasão

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“Brasão”, crónica no Correio do Porto , na minha secção " Crónicas do Nada ". As estradas, quando não nos levam aos locais que conhecemos, serpenteiam por entre localidades onde somos estrangeiros. O desconhecimento acaba por pincelar as serranias de verde onde o cinzento urbano já nada nos consegue colorir. Enquanto saboreio a viagem, curta, por não saber onde estacionar com o cuidado e zelo em não estorvar ninguém, um pouco como aprendi a fazer na vida, galgo a imaginação debaixo dos toldes e oleados da feira, assente no revitalizado mercado do Couto. Já por lá não andam damas e cavalheiros, cavaleiros e futuros reis conquistadores e guerreiros. Agora, pijamas cardados espreitam por debaixo das abas das calças desportivas, talvez saboreando a manhã fria sem que a riqueza dele se ria, repousando na chinela de plástico moldada por uma máquina gélida e cansada, em oriental escravidão laborada. Do lado de lá da estrada, o lado de cá de quem por lá está, cigarros consomem fumado

Paz, o quão difícil pode ser, rapaz?

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“Paz, o quão difícil pode ser, rapaz?” ou mais uma Crónica do Nada , no Correio do Porto. No olhar embaçado do meu pai encontro o reflexo das sanzalas, picadas, regatos coloridos de peixes futuros e uma terra que paria abundância com a facilidade dos sonhos mancebos em terras distantes, separadas por um oceano nauseado em porões defecados por animais e o medo do desconhecido pelos umbrais. O empoeirado estacionamento separado do restaurante onde seria o convívio avivava a ansiedade. A viagem sulcada em toada serena amanhecia junto com o dia de sobriedade amena. Subimos a escadaria do moinho, sorriem vigorosamente do fundo de uma vida envelhecida, rodeando uma távola circular, cavaleiros do ultramar. Nas minhas feições reconhecem os traços de quem me cedeu a genética, confundem-me com o Velhinho, sorrio da situação, bebo um café rápido e chamo a restante comitiva familiar, em terra alheia, amigos estranhos transformam-na em lar. Com a cavalaria a caminho, cumprimento quem do nada me cha

Lanterna

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"Lanterna", a mais recente crónica do Nada no Correio do Porto . Ao cimo das escadas, o andor era solenemente enfeitado com a gordura condensada da fritura das rabanadas. O odor ameno a canela e açúcar amarelo, depois de embeber o cacete fatiado, adornava o resto do tecto que, por entre as marcas da humidade persistente, espreitava feliz para a estrela encimada na crista do petiz pinheiro de Natal. Resinoso ainda, adormecido entre os musgos arrancados com as mãos em fartos tufos às húmidas costas da pedreira, sacudia orgulhoso as luzes intermitentes que projectavam um firmamento iluminado do espectro visível de cada vez que se desligava a luz do candeeiro da sala, junto com pinhas e bolas de chocolate embrulhados no acetinado papel colorido, prateado, antecipando o adocicado travo na boca quando se deixa derreter o cacau com todo o tempo que a infância encerra.   Duas ou três travessas, atravessadas num canto da mesa da sala, sobre a toalha vermelha e branca, estampada com dó

São Simão

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“São Simão”, crónica do Nada, no Correio do Porto ( aqui ). Com o Domingo a transpirar em bátegas de água, resta-me navegar pelos riachos enfurecidos que escoam ao fundo da estrada, depois dos paralelos, até se aninharem nas verdes encostas de campos abandonados. Dizem que chove, consulta-se oráculos digitais cujos algoritmos, cada vez mais acertam menos, tais as vicissitudes climáticas que, tal como o Homem, estão cada vez mais estranhos. No meu resguardo à prova de água, sob o guarda-chuva inclinado ao vento, talvez em reverência a Eos, vou caminhando sem astrolábio ou balestilha. Há estrelas, mas não as vejo agora, pois a minha noite ainda não caiu e o firmamento, para já, é este tecido cinzento que se encima sobre as varetas. A placidez de um São Simão chuvoso, entre falos exagerados com laços azuis e cor-de-rosa, pendurados nos toldos impermeáveis das doceiras, e autocarros estacionados entre regatos, vai contrastando com as canecas de vinho novo, tintadas pela inconstância de mão
O vento queimado ondula as cinzas no olhar de quem não se vê, a fuligem é tudo o que resta. O respirado matinal enrubescido humilha o solitário tição exaltado, a vaidade morreu. O firmamento apagado nubla a pauta luminosa do que resta ao infinito, este corpo não sou eu.

Julieta

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“Julieta”, crónica do Nada, hoje sobre o quase Tudo, no Correio do Porto . Os naperons feitos de jornais e velhas listas telefónicas, recortados com o decoro próprio de quem suspira a vida e a mesma se verga sobre si, em deferência, ornamentam as prateleiras vazias de uma cozinha de chão de terra batida, negra. O tempo pára de cada vez que consulto a memória. Na Aldeia de Cima não há maior consolo do que uma lareira a crepitar na tarde de Outubro, lajes espessas, negras e sorridentes, panelas negras em tripé oxidado, traves cobertas de fuligem e as minhas calças penduradas num galho de austrália, a saborearem o braseiro dos grossos troncos ruborescidos. Três cachopos, na travessura cândida de escolher o mais profundo rego a percorrer, galochas esverdeadas e o futuro multicolorido pela frente, sem saber que, agora, esta tarde de Domingo me olha entristecida para o que não consigo vislumbrar. Suspirava, a matriarca, bondade ao mesmo tempo que do fundo da arca tirava um tição negro em for

Nortada

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"Nortada", crónica no Correio do Porto, na minha secção "Crónicas do Nada". Link aqui . O Outono chega orientado pelo rumo da nortada. As nuvens cinzentas cinzelam o verde escuro, ainda imaculado, pintado nas encostas das serras ao fundo, placidamente a observarem o azul do mar.  A viagem, iluminada pelo Sol a reflectir-se orgulhoso nas águas do Atlântico, ziguezagueando a estrada e, também, os pensamentos, fez-me mais temperado que o barulho das ondas celestes supunha. Ao sair, a frescura de final de Agosto, quando a há, como hoje houve, chamou o zéfiro para, certamente, se rirem ambos de mim, incauto turista na baía e, confesso, na vida. O vento, agradável, puxa-me as mãos para o fundo dos bolsos e sorrio ao ver-me arrepiado em pleno Estio. Tinha razão, o frio. Ainda que não em demasia, tirita-me até que o corpo se habitue ao térmico desnível e, depois, recomposto, me indique que posso iniciar o passeio.  Seios exibem-se, sem pudor, libertos da indumentária quotid